Por entre os caminhos (versao mais atual,completo)



Era um dia qualquer
desses todos iguais
onde o vento levanta saias
sem promessas de vendavais

As paisagens corriam janelas
ninguém em estado febril
cadeiras balançam mesmices
lembranças de algum abril.

Além da calma da serra
do outro lado da lagoa
ouviu-se estranho estampido
de espanto que o bando voa
um batuque sem cadência
atravessava a colina
e um outro alguém que pescava
ouviu estranha ladainha.

Era mesmo um dia igual
cachorros perambulavam pelas ruas
roupas flamejantes no varal
nada anunciava
algo no tal porvir 
na calma da mesma tarde
que deixava o sol se ir.


Quando tudo se recolhia,
na tarde sem surpresas
na hora da ave-maria
pelos lados da represa
entrou estranho senhor
que não era das redondezas

Caminhando em passos largos 
pelo deserto das ruas
nada em seus olhos dizia
que aquela parte da terra
jamais na história fora sua 

O povo que terminava
as preces da mãe senhora
guardou as virgens á chaves
chamou as crianças lá fora
o que queria aquele homem
negócios, prazer , esmola?

Ninguém nem se atrevia
interrogar tal cidadão
que trazia grande alforje
e um anel em cada mão. 

Entrou no bar de Juquinha
botou o alforje no chão
tirou do cinto a pistola
e pôs no sujo balcão

Olhou no olhos de Juca,
que pôs no colo o facão
pois era dos mais valentes
entre os homens da região

Se acalme meu senhor
que venho em missão de paz
guarde consigo minh´arma
boa sorte não me traz.

Juca ficou bem mais manso
olhou de novo o rapaz
e viu que no fundo dos olhos
nele havia algo mais. 

Não vou lhe contar nada agora
que minha garganta está seca
me dê uma dose dobrada 
da sua melhor receita.

Cachaça de meu alambique
dormida em bom barril
com cascas da velha árvore
que só floresce em abril.

Tomou o forasteiro
duas das doses dobradas
depois pediu para Juca
uma noite de abrigada.

Podes ficar no meu rancho
o tempo que precisar
mas tens de contar a história
que por aqui lhe faz parar

Obrigada meu bom homem
em breve vou lhe contar
mas antes deixas que eu deite
na rede pra me embalar
e durma o sono dos homens
que vivem á caminhar

Durma seu sono tranquilo
que eu lhe recebo no peito
tenho o tino de saber
ver a alma do sujeito
e sei que o senhor
é um homem de respeito.

Eu muito lhe agradeço
bom Juca do bar 
e prometo de manhã
minha história lhe contar
Bom dia forasteiro
seu nome inda não sei
aceite este café
que eu mesmo preparei.

Eu me chamo Raimundo
como santo Nonato
e vago por este mundo
sem caneca nem prato
já andei por todas as terras
que o senhor viu em retrato
em busca de alguma coisa
que não conheço de fato.

O senhor me desculpe
não quero lhe desmentir
mas o senhor é ainda moço
pra já ter visto tudo ai.

Eu também fui viajante
marujo de embarcação
já guiei carroça de jegue
trem de ferro e batelão
e gastei muitos anos
correndo de pé a estrada
rompendo o mato fechado
com terçado fiz picada
e mesmo assim eu vi pouco
que o mundo todo é estrada.


Meu bom senhor não me ofende
sei bem que é de duvidar
pois minha cara não diz
meu tanto de caminhar
e as estradas sem chão
que me viram atravessar
para os lugares tão longe
dos quais me fiz embarcar.
mas eu agora lhe pergunto
com grande curiosidade
por que um viajante
parou nesta cidade?
se o caminho é melhor
que ver sempre a mesma tarde.

Ora forasteiro,
não tente me enganar,
que aqui é você
que tem que a história contar
mas como o dia é longo
e vosmecê num sabe onde vai
vou lhe contar um pouco
da minha história rapaz

Bom dia pra vocês
que estão a prosear
vim conhecer o senhor
que eu nunca vi por cá
mas se é amigo do Juca
eu vou lhe cumprimentar

Ou é acaso parente
que veio lhe visitar?
me apresente o cidadão
e abra logo seu bar
que hoje a função é cedo
pois cedo terei de voltar.

Este é Raimundo
como o santo Nonato
vaga por este mundo
sem tigela nem gato
é meu hospede agora
e lhe ofereci meu prato.
e peço pro meu amigo
respeito e o melhor trato.

Sou João da Cacimba
aqui nasci e me criei
e nesta terra escondida
sou o sabedor da lei
e por ela eu lhe digo
também lhe receberei
pois é amigo do Juca
e esse aqui é rei
que sabe muitos segredos
que eu nunca saberei.

Ora João da Cacimba
aceite um café quente
que cachaça essa hora
num é coisa de gente.
e pegue um mocho lá fora
e por aqui se assente
que vou contando a história
da vida da minha gente
e se inda eu num lhe contei
se junte a nós e se atente.

Sua história eu já ouvi
pra mais de milhão de vezes
mas este cidadão
é que eu não sei quem fez
de que casa saiu
se é caboclo ou português
fale comigo meu filho
pra eu lhe ouvir uma vez.

Bom dia João da Cacimba
sotaque comigo não trago
que ja andei tanta terra
que todas comigo guardo
e sou uma grande mistura
de tudo que estive ao largo.
agora ouço a história de Juca
e do seu passado


Minha família perdeu-se
no desfazer dos caminhos
não tenho mulher nem filho
que eu não sou de fazer ninho
e foi a marretagem
que pôs neste cantinho
eu tinha um barco velho
o qual eu chamava de esperança
vendia pra mais de mil coisas
tecidos, ervas, lembranças
um dia aqui atraquei
por conta da maré mansa
meu barco sumiu do porto
e dele não tive noticia
foi assim que parei
nesta bendita província
como eu tinha juntado
dinheiro pra envelhecer
achei que tava na hora
de eu me estabelecer
então fiquei por a cá
que quase não tinha nada
uma igreja e dez casas
na beira daquela estrada
depois do meu alambique
a cidade toda cresceu
e é por isso que dizem
que aqui o rei sou eu.
Não tenho nem um segredo
nunca na vida fiz mal
fosse gente ou bicho
pé de planta ou mineral
sou um homem de paz
e nasci no pantanal.
A minha história é esta
se tem detalhe esqueci
e vamos logo andando
que preciso o bar abrir...


O dia naquele dia estava mesmo bem quente
nem bem o Juca abria
já tinha muito cliente
que os homens da cidade,
como certa procissão
ali se reuniam no intervalo da função
pra saber das novidades
que tinha pra se contar
e tomar boa cachaça
feita no próprio alambique
do dono daquele bar
naquele dia todos sabiam
que era certa a novidade
pois de noite um forasteiro
tinha invadido a cidade
e já diziam por ai
que nem Juca sabia a verdade
quem era o tal sujeito
E que vinha de que parte?
O primeiro a perguntar
foi Amâncio Jacobino
que era homem perigoso
e tinha um bigode albino
cabelos preto empastado
terno branco de linho.

Quem é o seu amigo Juca?
E o que o trás preste caminho?

Eu mesmo lhe respondo
que me chamo Raimundo
como santo Nonato
e venho correndo esse mundo
subindo colina, rompendo mato
o que eu faço aqui
nem eu mesmo sei de fato
procuro o que não perdi
este é o meu contrato,
meu barco tá ancorado
na beira de um matagal
e dentro dele só tem
meu bem vazio bornal
nem uma peça de ouro
nem coisas de se roubar
e mesmo meu velho barco
já não pode navegar
pois tem um furo no casco
que foi o que me trouxe cá.
procuro um estaleiro
pro meu barco consertar.

Jacobino logo abriu
Uma peteca de olho
Quer dizer que o senhor
É o dono do trambolho
Que ontem fez o barulho
Que eu ouvi no ancoradouro?

Meu navio se chama a Arca
em homenagem a Noé
que salvou todos os bichos
da chuva que fez maré
É um barco já antigo
já viu guerra e calmaria
e nele que ganho o pão
quando tem mercadoria
que levo de um porto ao outro
em cidade ou sesmaria.

E onde esta sua carga?
indagou Maneca Peixoto
que estava sempre bêbado
desde que era moço
pois tinha ficado viúvo
dois dias depois do casório
a mulher moça bonita
era de casa ao oratório
E morreu de repente
vitima de um vomitório
que ninguém sabe até hoje
que mal lhe acometia
e pra se esquecer disso
há mais de década
Maneca bebia...

Aquilo que venho a frete
não é mercadoria
nem caixas, nem sacolas
ou provisões de serraria
é coisa bem pequena
e nenhum valor pode ter
para alem da única pessoa
que pode lhe receber.

Juca abriu a torneira
de onde jorrava a cachaça
botou uma dose bem grande
da mais forte destilada
e entregou-lhe a Raimundo
lhe dando no ombro palmada



O senhor não precisa
contar mais nada por agora
que hoje vamos almoçar
com dona Chica Vitória
que aquela sim é mulher
que sabe de muita história
tem pra mais de 80 anos
foi professora da escola


É ela que vai lhe dizer
como consertar seu barco
no fundo duma xícara
ela tudo pode ver
se o senhor tá protegido
ou precisa se benzer
quebranto, reza ou olhado
que venha de lá consigo
ela descobre na hora
artimanha do inimigo
e tira do corpo pra fora
se for o caso do amigo

Será que essa senhora
poderia me ajudar
a achar o tal destino
do frete que me traz cá?


Se tem alguém no mundo
capaz de lhe responder
é a dona Chica
e sua xícara de chá.
termine logo essa dose
ou vamos nos atrasar...



Aqui estou dona Chica
atendendo o seu chamado
e o homem que lhe disseram
é esse aqui do meu lado
que veio lhe tomar benção
e ouvir o seu recado

A benção dona Chica
eu me chamo Raimundo
como o Santo Nonato
e vago por este mundo
sem dóceis ou aparatos.



Deus lhe abençoe Raimundo
em nome do Santo Nonato
Põe Maria das Dores
na nossa mesa mais prato
que hoje temos visita
de um moço de fino trato.

Dona Chica era mais velha
das pessoas da cidade
sabia de tanta história
que lá era autoridade
Pois toda a gente sabia
que dona Chica era maga
dessas que faz e desfaz
feitiço de encruzilhada
Era grande professora
Devota do magistério

Mas em sua vida tinha
Grande parte de mistério
Dona Chica sabia
Futuro, passado e presente
E o chá que era certo
pra cada gente doente
Só tinha errado uma vez
Com a mulher do Peixoto
Não acertando o mal
Que lhe inflamou o goto.
Tinha consigo afilhada
A negra Maria das Graças
Que era feito azeviche
Os olhos cor de linhaça
E tinha os dentes mais brancos
De todas as moças da praça
Cabelos de cachos longos
Cintura de pilão
E pra mais de 20 homens
Lhe entregaram o coração
Mas era moça arredia
que quase nada falava
Preferia a encantaria
Que Dona Chica lhe ensinava.
Tinha ela aparecido
Na porta de Dona Chica
No meio do temporal
que tornou toda cidade
um enorme lamaçal
Mas dizem que dona Chica
Sabia de onde ela vinha
Mas nunca contou pra ninguém
A origem da menina
Que ela tanto cuidava
E como filha lhe tinha.
O tempo bem passou
E todo povo esqueceu
Quando a beleza de Gracinha
Junto com ela cresceu
Até o senhor Jacobino
Já tinha proposto um dote
50 cabeças de gado
Duas fazendas no norte
Pra ver se Dona Chica
lhe entregava o laçarote
do vestido de rendinhas
daquela beleza de morte.
Mas Das Graças não queria
Riqueza não lhe encantava
Pois bem no fundo do peito
Um grande amor esperava
E ai sim seu coração
Sem medo nenhum entregava.

Vamos andar no jardim
Que quero lá escolher
O chá que o seu Raimundo
Conosco irá beber
Se o Juca não se importe
Vou lhe pedir um favor
Um litro de aguardente
Do alambique maior


E lhe peço que busque agora
E me deixe com este senhor
O Juca logo saiu
Para atender o pedido
Entendeu que dona Chica
Queria só o amigo
Pra lhe dizer as coisas
Que este trazia consigo

Esta terra é bem distante
Das rotas de navegar
E só o destino do mundo
É que traz gente pra cá
Por isso caro Raimundo
Pode se aquietar
Pois está aqui mesmo
O que estás a procurar

O Juca havia me dito
Dona Chica vai lhe ajudar
então por favor me diga
o que estou a procurar
preciso entregar a encomenda
e para a estrada voltar

Essas são margaridas lilases
Que só nascem por cá
Elas revelam segredos
Que o mundo fez ocultar
Seu efeito é quase nocivo
depois desse chá tomar
Você sonha com perigos
Que a vida vai lhe ofertar
Antes que o senhor possa
Com seu destino encontrar
Já esse é o jasmíneo
Que é chamado de Quisqualis
Ele lhe envia ao passado,
lhe mostrando os lugares
Onde começa a história
e a origem dos males



E aqui ainda sem flor
Fica a orquídea malhada
Que revela o futuro
De quaisquer das empreitadas
Mas só floresce daqui
Há dez noites e alvoradas
Por isso o senhor escolhe
O que quer saber primeiro
O passado da história
Ou os perigos certeiros
E se vai esperar a orquídea
Florescer neste canteiro.




Se eu escolho o passado
Descubro onde começou
Esse suplicio danado
Pelo qual aqui estou
Mas não fico avisado
Dos perigos a correr
E se for daqueles grandes
Desses de padecer?
Existe mais algum aviso
se margarida escolher?


Se escolher a margarida
Precisarás esperar
Até que se realize o sonho
Para outro chá tomar.


Não parece tão ruim
Esta condição aceitar
Prefiro as flores lilases
E pelo mal esperar
Que seguir desavisado
Por estes caminhos estranhos
Que me revele a maldade
A margarida dos sonhos.

A sala de Dona Chica
Tinha tudo que era santo
Dez tipos de nossa senhora
uma em cada canto
Era casa de novena
de incenso e milho branco

Aqui está a cachaça
Que em casa fui buscar
Demorei um pouco
Pois tive de me livrar
Do Amâncio Peixoto
Querendo me interrogar
Pra onde eu estava indo
E o quê que tinha por lá.
Obrigada Juca
Deixe isso no girau
Do lado daquela outra
Que me destes no natal
Que é bom que tome sereno
Pra mistura em folharal
Depois venha pra cá
E nesta cadeira sente
Que hoje Maria das Graças
fez comida de azeite
Desculpe dona Chica
Não quero lhe incomodar
Mas que horas poderei
Tomar aquele chá?
Ora, não se aperreie
Que esta hora vai chegar
Mas antes encha a barriga
Com a bóia que vem lá
Gente que esta com fome
Não costuma sonhar
Maria das Graças entrou
Trazendo o prato nos peitos
E teve um tremelique
Quando viu o tal sujeito
A perna ficou bamba
E o rosto dela aqueceu
E foi por muito pouco
Que a moqueca não se perdeu.
Já o Raimundo
da moça passou batido
Não era homem de flerte
Já era comprometido
e só pensava no chá
que tinham lhe prometido.
Maria das Graças sentada
Ao lado da dona Chica
Olhava com rabo do olho
Cada colherada
Que no molho Raimundo dava
Então o senhor é o viajante
Das Graças lhe perguntou
E que não sabe dizer
Por que por aqui parou?
Correm rápidas as noticias
Nesta pequena cidade
E nem sempre é agradável
Quando se é a novidade
Meu navio quebrou o casco
Não há motivos pra alarde
Sou só um entregador
Em busca de outra metade
que é entregar o produto
Do frete que tomei parte.
Maria das Graças
Minha filha
Não seja indelicada
Que o senhor Raimundo
Está numa empreitada
E se não pode ajudar
Desculpe senhor Raimundo
Não queria lhe ofender
É que aqui neste lugar
Costumam acontecer
Surpresas inesperadas
Como a que trouxe você
Essa moça é danada
Resmungou Juca do bar
Enquanto dona Chica fez
Das Graças se retirar
E convidou os dois homens
Para tomarem um chá
Antes de tomarmos chá
Aceitem esse cigarrinho
Do fumo que eu mesma planto
e chamo de canarinho
pois tem a natureza
de também ser bem verdinho
Me faça um cigarrinho
eu lhe peço pra levar
por que neste instante
terei de voltar pro bar
que o turno da tarde
já esta a me esperar
deixo-lhe aqui o Raimundo
pra consigo tomar chá.
Agora que o Juca saiu
Preciso lhe perguntar
O senhor esta seguro
De qual chá irá tomar?
Eu andei pensando um pouco
No jasmim e a margarida
Mas fiquei muito intrigado
Com o que disse a menina
O que de estranho ocorre
Neste lado da colina?



A Das Graças fala pouco
Mas sempre fala demais
Vejo que ela acabou
De amedrontá-lo rapaz
E se assim for
O chá não lhe darei mais
Que pra um coração franco
Causa efeitos anormais
E pode o senhor ficar louco
Ou não acordar jamais.
Senhora Chica Vitória
esqueça o que perguntei
pois estou bem seguro
que este chá beberei
de margaridas liláses
do jeito que lhe falei.

Assim que me agrada
certeza, coragem, fé
me passe por favor
outro pedaço de lelê
e vá pegue cinco flores
para o chá delas beber.

O chá ficou amarelo
E depois mudou de cor
Mas Raimundo não sabia
Se viveu isso ou sonhou

Deixou o corpo pesar
No encosto da cadeira
Depois achou melhor deitar
Nalguma espreguiçadeira
Tendo em vista que o chá
Deu-lhe uma enorme canseira

De repente estava sentado
No meio de uma clareira
Que tinha enorme arvore
Na beira da ribanceira
Coberta  de muitas flores
Azuis, lilases vermelhas
Imediatamente soube
Que aquela era a arvore
Que só floresce em abril
Que a casca da mesma
Juca põe no barril

Chegou perto da árvore
E pode constatar
Que a cor das flores
Estava sempre a mudar
E teve a impressão
Que trocavam de lugar

Deu dois passos certeiros
Na direção de uma flor
E logo a paisagem
Toda se transformou

Estava na frente da Igreja
No meio da romaria
Com os olhos pousados
Na imagem de Maria
Que pulou toda faceira
Alheia a gritaria
E olhando bem pra Juca
Fez uma cantoria

Cuidado com o segredo
Que estou pra lhe revelar
O senhor a sua arma
De volta tem que apanhar
Por causa do peçonhento
Que logo vai lhe espreitar
Traga tabaco no bolso
Pra melhor caminhar
E enfrentar os perigos
Que lá pelo lago terá
Não aceite encomenda
Nem entre em confusão
Até que tenha passado
O dia da procissão
Olhe bem para o lado
Que nele tem um ladrão
Com um terçado no cinto
E na boca uma oração
Pegue só o que precisa
Que o olho não pode ser
Muito maior que a mão

Dito isso a santa
voltou para o seu andor
e toda multidão
seguiu com seu louvor
e entoou a ladainha
que Raimundo despertou
estava na casa de Juca
sem saber como lá chegou

Ainda estou sonhando?
Perguntou desconfiado
Agora não está mais
Passou dois dias desmaiado
Mas D. Chica garantiu
Que inda lhe via acordado

Eu tive um sonho estranho!

Não precisa me contar
Foi isso que a D. Chica
Pediu para lhe avisar
Se contares o sonho
O encanto se perderá
E este chá que tomaste
Não mais o repetirás
Pois podes enlouquecer
Ou não acordar jamais

Gostaria da minh´arma
De volta receber
Pra enfrentar os perigos
Que sei que vão suceder

Aqui esta sua arma
Que lhe entrego carregada
Espero que não á use
Por este trecho da estrada.

Mas vamos deixar de prosa
Que o senhor tem que comer
Ou ficará mais fraco
E pode se adoecer
E cá não queremos isso
Melhor se fortalecer

Raimundo devorou
Um frango inteirinho
Comeu pra mais de dez bifes
Arroz, feijão e toicinho
E ainda guardou vontade
Pra devorar o lelê
Que a Chica da Vitória
Mandou lhe oferecer
E junto com ele o recado
De o sonho não se esquecer.

Era ainda de manhã
Quando da decisão
Que o Raimundo tomou
De buscar a embarcação
Pois fazia muitos dias 
Que não lhe punha a visão

Foi para o bar de Juca
E falou pro camarada
Me dê uma dose grande
Que vou encarar a estrada
Preciso ver minha arca
A qual deixei ancorada
Na beira de um matagal
Perto da pedra afiada
Que me furou o casco 
Numa tarde de mansarda.

Juca trouxe de dentro
Um cantil de aguardente
E um rolo de fumo
Para lhe dar de presente

Raimundo logo enfiou
As provisões no alforje
Amanhã sairei
Antes que o sol acorde
E de lá voltarei
Antes de o dia torne

Por onde veio se foi
Seguindo na mesma estrada
Porém de repente se viu
No meio de encruzilhada
Por onde ele não passou
Na viajem de chegada

E agora por onde vou
pôs-se  a perguntar
Sem nem fazer idéia
De qual direção tomar
Sentou-se numa pedra
e ficou lá a cismar
Como ele saberia
Qual dos caminhos trilhar?
Foi assim que percebeu
Algo de singular
Cada caminho uma cor
Parecia iluminar

Amarelo e vermelho
Lilás e anil
Só uma daquelas cores
Não era da flor de abril
E assim o caminho
Amarelo ele seguiu

Já estava o sol á pino
Quando chegou no lago
Que da outra vez 
ele atravessou a nado
Só que desta vez ele viu
Uma montaria atracada
E pareceu-lhe tão fácil
Que achou que era cilada
Botou a arma no alforje
E segurando pra cima
Atravessou o lago
Para o lado da colina

Quando olhou pro outro lado
Montaria não havia
E a margem que atrás ficou
Estranha lhe parecia
Não conseguiu distinguir 
A trilha na qual seguia

Ouviu um barulho esquisito
Que vinha do meio do mato
Tirou a pistola do alforje
Botou-a perto do tato 

Começou a caminhar
Indo em busca do seu barco
Que estava depois da colina
A qual ele via o alto
Mas inda estava distante
De enfim subi-la de fato

Quanto mais caminhava
Mas o barulho crescia
E teve a sensação
Que algo ali lhe seguia
Lembrou-se da advertência
Que a arma ele usaria

E cada vez mais atento
A colina ele subia

No topo da colina 
O barco ele avistou
E viu como ele estava
bem perto do atracador
se acaso estivesses bom
eu ia ai lhe buscar
mas preciso de outro barco
pra poder lhe rebocar
ele gritava pra Arca
como se esta pudesse escutar

Voltou descendo a colina
Pensando que a noite vinha
E em todo os perigos 
Que aquela mata continha

O barulho que lhe seguia
Pela descida sumiu
Mas já bem perto do lago
O mesmo barulho ele ouviu

Era um pequeno chiado
De um arrastar abafado
Que agora forte vinha
Na outra margem do lago


Percebeu que a montaria
Agora estava desse lado
Pulou nela depressa
E esperou o resultado
E antes do que pensava 
Viu-se no meio do lago

Continuou remando
E só ai percebeu
Que o fundo da embarcação
De repente estremeceu
Foi então que viu dois olhos
Que bem miravam os seus
Era uma enorme cobra
Que pra ele apareceu
Raimundo sacou a pistola
E na cobra ele atirou
Mas viu que no couro da bicha
A Bala não entrou
Então mirou bem no olho
E a danada cegou

Quando ela saiu guinchando
Com toda força remou
E quando chegou na margem 
Na carreira disparou
E então se viu perdido
E num tronco se sentou

Puxou o fumo do alforje
E um cigarro apertou
Se deu que no mesmo instante
Em que a fumaça subia
Do meio do mato veio
Uma estranha musiquinha

Se tiver tabaco eu fumo
Andando pelo mato
Me arranje um bocadinho
Que o perdido eu desato

Do meio do mato saiu
Uma mulher despenteada
Descalça, coberta de trapos
Suja e desdentada
Que era a autora da cantiga
Que ele ouvia na mata

Bendito seja 
O senhor Jesus Cristo!
Disse a que apareceu

Para sempre seja louvado!
Raimundo lhe respondeu

Acaso o senhor ta perdido
No fundo desse buraco?
Perguntou-lhe a mulher
Com os olhos no tabaco

Boa noite senhora 
Eu me chamo Raimundo
Como o santo Nonato
E agora me encontro perdido
Pelo meio desse mato

O Senhor se incomoda
De me oferecer um trago
Desse fumo cheiroso
Que esta ai do seu lado?

Pois este fumo que trago
Posso lhe dar um bocado
Mas antes duas coisas
Me deixaram escabreado
Onde esta a minha trilha
E o que era o bicho do lago?


Passe pra cá esse fumo
E venha me acompanhar
Que penso melhor andando
E fumo pra mó de andar
Deixa eu lhe conte 
A história da encantada
E não pergunte meu nome
Que no mundo não sou nada

Aquela cobra danada
Desde muito pequena 
Mora naquele lago
Passa 10 meses dormindo
E dois fazendo estrago
E demora sempre três horas 
Pra já ter ido e voltado
Quem foi homem distraído
Ta no seu bucho enjaulado
Não tem bala que fure 
A pele da desgraçada
Que esta peste só morre
Se acaso for degolada
E se enterrarmos bem longe
Suas partes separadas

Eu agora lhe ceguei um olho
Disso tenho certeza
Acaso fiz um favor 
Pro povo das redondezas?


O que posso lhe dizer
É que arrumou um problema
Que essa cobra foi filha
Da velha cabocla Jurema
Que há muito foi encantada
E até hoje paga a pena
E quererá se vingar
A certeza disso tenha. 

Siga agora esse caminho
Que o senhor já ta entregue
E se alguém lhe pedir tabaco
Não pense nunca em negar
E lembre que a cobra grande
Com certeza vai voltar
E que a miserável não dorme
Enquanto num lhe encontrar.

Raimundo viu o caminho
E se virou pra despedir
E viu que a mulher 
Já não mais estava ali
e do alto de uma arvore
um barulho pode ouvir


fióóóóóóóóoóóóóóte!
Quando Raimundo chegou
o dia já amanhecia
e da igreja ali perto
ouvia-se a cantoria
pra lá se dirigiu e 
lá encontrou Maria

Das Graças toda de branco
um branco riso lhe ria
já encontrou seu barco
caro senhor Raimundo
por aqui já se pensava 
que o senhor sumiu no mundo

Bom dia senhorita
eu ainda cá estou
e para pegar meu barco
 careço um rebocador
a senhora sabe alguém
que me faça esse favor?

Vou lhe contar uma coisa
que esta noite ocorreu
pois não foi que a tal da arca
no trapiche apareceu
ninguém sabe quem a trouxe
e só sei que não fui eu

Raimundo saiu correndo
para o lado da beirada
e lá se deparou
com a embarcação atracada
e no seu casco não tinha
nem uma parte quebrada

Quem consertou fui eu
disse o Maneca embolado
mas eu não sei quem foi
que a trouxe preste lado
o senhor não se admire
sou homem navegador
e aprendi muita coisa
na vida de estivador
e conheci toda embarcação
que neste porto parou. 

Eu muito lhe agradeço
meu bom Maneca Peixoto
e o seu belo trabalho 
deixou o meu casco outro
aceite este pagamento
e não me devolva troco
que qualquer coisa que eu pague
ainda seria pouco

O senhor é generoso
meu caro amigo Raimundo
mas esse dinheiro é do Juca
e pra ele darei todo
que quando não gasto no bar
perco tudo no jogo

Faça como quiser
que agora o dinheiro é seu
e me diga uma coisa 
a procissão já ocorreu?

pode ficar tranqüilo
que a novena não acabou
ainda faltam três dias 
pra santa subir no andor
e ainda vai ter muita reza
pra aporrinhar Nosso Senhor

Raimundo ficou pensativo
com o tamanho da charada
como a sua embarcação
surgiu ali ancorada
se ela estava mesmo
com a beira da proa furada. 

Achou melhor não buscar
agora uma explicação
e se dirigiu pra igreja
pra saber da procissão
pois ela era uma parte
da sua estranha visão.

Quando chegou na igreja
a missa tinha acabado
Mas lá estava o Amâncio
e o bigode desbotado
fez cara de muito amigo
e convidou animado
vamos comigo tomar uma merenda
e também quero que o senhor
conheça minha fazenda
e vamos pelo caminho
que a nossa conversa se emenda.
Quando Raimundo e Amâncio
seguiam pelo caminho
o chão estremeceu 
e um cento de éguas montadas
num instante apareceu


Nelas vinham mulheres
Com o cabelo escorrido
Com colares feitos de dentes
De todo tipo de bicho
Que lhe cruzaram pela frente


Todas da cor do barro
Tinham olhos mais fechados
E vestidas vinham
Com um seio desnudado


Amâncio tremeu todo
Raimundo ficou assustado
Quando uma das mulheres
Pôs a lança pro seu lado


Se tens ainda língua
Ela irei comer
Se não me disseres agora
Teu nome que eu quero saber!


Eu me chamo Raimundo
Como o Santo Nonato
E nunca nesta vida
Sofri tal desacato


Ora me faças uma dúzia de beiju
Que quem andou atirando
Nestas terras foste tu


Eu vim aqui pra te dizer
Que vá se consultar
Com o João da Cacimba
Que este vai te falar
Como é que funcionam
As leis neste lugar.
E quantas destas
Tu estás a ignorar


Vou te dar um conselho
Pra ti sempre guardares
Quando chegares perguntes
O tempo dos lugares
O que fazeres e
Principalmente o que evitares
Pra que não sejas tu
O causador dos males


E fique logo sabendo
Que homem aqui tem lugar
E não me faça novamente
Fora de hora voltar.

Raimundo estava tonto
Tinha perdido a noção
E não sabiam se era o peito
Ou o rumo da discussão
Chegou mesmo a querer
Aquela lança no corpo
Pois com aquilo que sentia
Melhor seria estar morto


A senhorita ou senhora
Há de me perdoar
Prometo que com João
Em breve irei tratar
E que de modo algum
Tornarei lhe aborrecer
Então me diga seu nome
Pra eu melhor lhe conhecer


Pois está feito o contrato
Não torne me aborrecer
O resto João da Cacimba
Encarrega-se de dizer
E saia das minhas vistas
Que nosso assunto por hora
Acabo de resolver.


Saíram todas de vez
Em rápida galopada
Na corrida delas caiu
Uma pedra verde amarrada


Seu Raimundo largue isso
Voltou Amâncio a falar
Isso é maldição garantida
Só intrigas lhe trará
E agora pra João
Eu mesmo vou lhe levar




João da Cacimba estava
No exercício da função
Era grande marceneiro
Homem de fabricação
Que Entalhava os andores
Usados na procissão.
E cada ano fazia
A mais diferente versão



Bom dia Dom João
Eu vim cá lhe trazer
Este homem que o senhor
Precisa esclarecer
Ele fez alguma coisa
Que ele nem sabe o que.


Se o senhor permitir
Gostaria de escutar
Por que quem sabe
Eu mesmo hei de ajudar


Prezado senhor Amâncio
Isto aqui é particular
Se for da vontade do cabra
Depois irá lhe contar
Por agora peço-lhe
Que me deixe
Com o cidadão conversar.


Amâncio saiu irritado
Chutando serragem do chão
Enquanto João fechava
A porta do barracão


Agora somos nós dois
e preciso lhe inquirir
acaso foi o senhor
que disparou os tiros
que ontem se ouviu por aqui?


Pois eu atirei
E foi num bicho malvado
Que queria me comer
Quando atravessei o lago


E por acaso o senhor
Atravessou-o a nado?

Eu lhe respondo que não
Usei um casco ancorado
Por que há muito me seguia
O bicho mencionado
Pois o que o senhor usou
é uma casca sagrada
Que por aqui se usa
Pra falar com a encantada
Que o senhor atingiu
Com sua arma carregada.
Por acaso não o viu
Quando da sua chegada


Creio que não usei
O mesmo caminho de antes
Posto que desta vez
Pareceu-me mais distante

Acaso o senhor encontrou
No caminho outra pessoa?


Encontrei uma mulher
Que aqui me fez chegar
E sobre a danada da Cobra
Foi a primeira a me alertar


E como era o nome da dona
Que por lá lhe ajudou
Acaso em alguma hora
Isso ela lhe falou?


Ela me pediu
pra isso não perguntar
mas me ajudou de fato
ao meu caminho voltar


Aquela é a Matinta Perera
É mulher mal assombrada
Que vive aqui desde sempre
Também é das encantadas
E sabe imitar de tudo
cara e voz de gente
barulho de bicho e risada




De noite é um passarinho
que canta na madrugada
não sabe fazer ninho
e põe um ovo por botada






O ovo da Matinta
Tem um efeito danado
É ele que dá a Cobra
O descanso no lago
Se acaso não come ele
O bicho fica acordado
E quando ta acordada
Ela não para de crescer
Se ela crescesse muito
No lago não ia caber
e muito tempo fora do lago
pode lhe fazer morrer.

São brigada faz tempo
Antes de todo mundo nascer.


E uma coisa lhe digo
e lhe peço pra ouvir
grande confusão
o senhor fez por aqui


Ai Raimundo percebeu
Por causa desse detalhe
Foi então o tiro errado
que deu ele naquela tarde


E viu que ainda nada
vivera da previsão
E que a cor que escolheu
Não tava na tal visão
Ainda desobedeceu a santa
E se meteu em confusão.


Se a cor amarela
No sonho não apareceu
Então o caminho errado
Certamente ele escolheu

Ainda tem as mulheres
que eu não sei quem são
e uma delas me disse
pra eu vir aqui lhe ver
que o senhor me diria
o que preciso saber.


O senhor se meteu
Bem no meio da lei
Que faz a Cobra Grande
Não mexer com ninguém
Se vem nadando ela deixa
Se vê o barco ela vem
Que assim só vai
Quem com ela assunto tem.




A tribo das mulheres
Fica do outro lado do lago
Bem pra lá da colina
Onde quebrou seu barco


A Matinta Perera é mãe
Da primeira amazona
Que por aqui cavalgou
Nascida do único ovo
Que a cobra não lhe roubou


Tinha aqui duas irmãs
Jurema e Jatuíra
Uma acordava de noite
Quando a outra se recolhia


Num dia de eclipse
Que tudo aconteceu
A outra acordou mais cedo
E só ai descobriu
Que sua irmã também dormia
Com o homem que era seu.


A Lua e o Sol se zangaram
Presenciando o ocorrido
Esta vai com ele
Esta se vem comigo
E tu ficarás
Sozinho em tua rede
Disse a Lua zangada
Para o índio Pena Verde




Jurema como não tomava Sol
Foi pra o fundo do rio
Foi lá que por castigo
A Cobra Grande pariu






Este mesmo castigo
Jatuíra sofreria
Mas de cima de uma arvore
Tão alta que o Sol lhe via
E foi assim que nasceu
A encantada Matinta
Que é irmã da Cobra Grande
Pois são as duas filhas
Do índio pena verde
Que com suas mães dormia




E como eu já lhe disse
O ciclo se seguia
A Matinta botava
A Cobra Grande comia
A primeira Amazona
Da Matinta era filha
E por conta disso
A Cobra Grande era tia.


A Matinta só bota
o seu ovo voando
e só se vira em gente
para sair procurando
e é sempre no mesmo tempo
que a Cobra ta se acordando


A Cobra Grande 
Não era de parida
Não botava ovo 
Nem ficava de barriga
E ainda comia o ovo 
da meia-irmã inimiga.


Um dia a Matinta pediu
Um conselho pra Perema
Perguntou se ela sabia
Como era pra esconder
O ovo que a Cobra Grande
Sempre queria comer


A Perema lhe disse
Que seu ninho ela abria
Na areia bem fina
E ovos lá escondia
E que se ela quisesse
Seu ovo ela esconderia




A Cobra Grande procurou
Por todo lugar que havia
O ovo da Matinta
Sem o qual não dormiria





Começou passar o tempo
E a Cobra Grande crescia
E em pouco tempo no lago
Certamente não caberia
Se continuasse a crescer
Com a rapidez que crescia


Foi assim que ela fez
Esse apelo pra Matinta:


O que eu te fiz Matinta
Pra ti me negar
Justamente aquilo
Que jamais perderás
Pois o que tu não tens
Não poderá te faltar
E o teu egoísmo
Em pouco me matará


A Matinta ficou sentida
Com o apelo Cobra
E foi falar pra Perema
Pra lhe dizer em que cova
Ela escondeu o ovo
Que ela queria de volta




A Perema foi logo dizendo
Que aquilo não faria
Se disse que ia chocar
O ovo ela chocaria
E não adianta pedir
Que não devolveria


A Matinta ficou furiosa
E a Perema jogou
Bem em cima de uma pedra
Que o casco dela quebrou
e ainda amoleceu
todo o osso que sobrou



E ainda ouviu da Matinta
Que ela não esperasse
Que naquele lugar
Nem um ovo vingasse
Até o dia que então
Seu ovo ela encontrasse
A Perema depois da queda
Passou andar devagar
E mandou chamar Muiraquitã
Pra com ela vir tratar
E pediu a sua ajuda
Pra aquele ovo salvar


O Muiraquitã
Prometeu que ajudaria
E escondeu o dito ovo
No meio da argila
Que era de cor vermelha
E a margem do lago cobria
Sabia que bem ali
Ninguém lhe descobriria


E assim foi
E começou a cantoria
A Matinta chorava
A Cobra Grande crescia
A Matinta catava todos os ovos botados
E dava pra irmã comer
Que algum daqueles ovos
o seu podia ser
E não escolhia,
nem bicho, nem caminho
Sabia que o Muiraquitã
O escondeu direitinho
E podia ser qualquer ovo
E podia ser qualquer ninho.




A Cobra comeu
Todos os ovos colocados
No entanto o ovo certo
Ainda não fora encontrado

E quando já se esperava
Que a Cobra morreria
A Matinta pôs um ovo
Que a irmã salvaria



É que apareceu por cá
Um tal dum fogo-fato
Que aparecia de noite
Lá pelas bandas do lago
E que um dia a Matinta
Encontrou por acaso


Ficou tão impressionada
que um ovo ela botou
Que o fogo mesmo lhe disse
Que ele que provocou
Deu pra irmã comer
E a ordem então voltou.


Mas os imprevistos
não tinham se acabado
por que o outro ovo
estava sendo chocado
e já quase ninguém
disso estava lembrado


Do barro mais vermelho
Da margem mais afastada
Foi que nasceu Una
A amazona encantada
que o Muiraquitã e a Lua
tomaram por afilhada.

No mesmo tempo que isso
Outra coisa aconteceu
a Cobra Grande já não crescia
porem não adormeceu
achava que era o tanto
de ovo que ela comeu


e qual não foi a surpresa
quando a danada pariu
um bem bonito menino 
e pro sol ela pediu




Fique com ele pra mim
Que não posso lhe cuidar
Passo tanto tempo dormindo
Como irei lhe vigiar. 
E o sol também aceitou 
O garoto apadrinhar.


A lua e o sol
Iniciaram a negociação
Usando o Muiraquitã
Pra fazer mediação
Iam separar os primos 
E esconder a confusão
Além disso mandaram
Os bichos calar
E é por isso que até hoje
Nenhum pode falar


Foi por essa ocasião
Que eles decidiram 
Que tudo que era vivo
Um dia morreria
Por que em algum tempo
Ninguém disso lembraria. 


Chamaram a cobra e a Matinta
Pra tomarem parte no acordo
E a Matinta prometeu
Nunca mais pegar o ovo
Pra evitar que o problema 
Se repetisse de novo


A Matinta aceitou
Mas ficou contrariada
E até hoje
com a Cobra Grande é brigada


Matinta Perera
por que essa só tinha
Meio encantamento
Ia cuidar das crianças
Lhes dando comida e alento


E ainda era responsável
De deixá-los separados
e garantido que o lago
nunca fosse cruzado


por que a pedido da cobra 
que as crianças queria ver
o sol criou a montaria
usada por vosmece
e só quem vai dentro dela
pode a cobra entender.


Como não precisava
Mais o ovo procurar
A cobra grande ficava
Nadando de lá pra cá
Aumentando o tamanho do lago
Pra este lhe acompanhar


Um dia apareceu
Ali um cavalo malhado
E dizem que aquele era
O pena verde encantado
Que foi visitar Una
e por ela foi domado
e foi o primeiro cavalo
por uma amazona montado




As outras éguas são filhas
Do mais estranho cruzamento
Do cavalo de Una
Com uma rajada de vento
Que fez nascer Jacotira
A égua mãe da ninhada
Que gerou todas as outras
Por amazonas montadas


Aconteceu que o Muiraquitã
Morreu na margem oposta do lago
E não houve quem impedisse
Una de ir velá-lo 


Quando o Muiraquitã morreu
A Lua e o Sol se lembraram
Que era culpa deles
Que a imortalidade lhe tiraram

A Lua resolveu transformá-lo 
num barro esverdeado
e para sempre guardá-lo
no fundo daquele lago


Era com ele que Una
Munida de todo carinho
Repetia a forma do sapo
Que um dia lhe foi padrinho


Mas Una sempre chorava
Quando mais tarde ela via
Que o sapo era moldado
E tão logo se derretia


O sol quando viu aquilo
Também se enterneceu
E punha o barro tão duro
Que nunca nenhum se perdeu

E assim do outro lado do lago
Enquanto chorava baixinho
Foi que encontrou Teston
Que vinha nesse caminho
Ficaram os dois assustados
Ao se verem assim
Cada um deles pensado
Que nunca tinham visto
Outro igual de si

So a Matinta era quem lhes acolhia
E não era tão gente assim
Como o que cada um via.
Falavam a mesma língua
Puseram-se a conversar
Sobre o que tinha na margem
Que não visitava
Assim travada a amizade
começaram a cruzar
pelas margens desconhecidas
o dia todo de la pra ca
deitavam entre folhas a noite
e encostavam seus corpos
para melhor se esquentar
não se sabe ao certo
como foi que descobriram
os encaixes tão perfeitos
que os seus corpos faziam.

A Matinta ate tentou
Mas não mais pode impedir
Nem separar os dois
Que delam viviam a fugir


Una e Teston
Tiveram muitos filhos
E com eles nenhum cuidado
E quando deram por si
Tinham se engravidado

logo a cobra Grande 
Foi ter com o filho Teston
E resolveu contar pra ele 
Como tudo começou



Sabendo da briga que teve
Entre Jurema e Jatuíra
Teston resolveu
Que os filhos separaria
E mandou todas as mulheres
Pro outro lado da ilha


As irmãs muito espertas
Na hora em que partiam
Deram sapos de pedra 
Para os irmão que preferiam
E assim em qualquer lugar
Seus sapos reconheciam
E assim a briga entre elas
Também evitariam


A Matinta foi pro mato
A pedido da filha
Que não gostava muito 
Da maldição que esta tinha
Pois causava nas crianças
Medos e gritarias



As meninas atravessavam
Sempre pro lado de cá
Então o pai resolveu 
Nova regra criar



Venham cá só uma vez
Depois que o sol partir
Na primeira noite sem lua 
Que cobra Grande Dormir
Que assim ninguém saberá
O que se fez por aqui. 




Quando os navegadores vieram
Chegaram do lado de cá
E Teston resolveu, com eles se juntar
Pois tinha uma branca entre eles
Que fez seu peito pulsar


Una não gostou
Do que tinha acontecido
E botou todas as filhas
De vez contra o marido
E disse que com elas 
Havia o mesmo perigo


No barco dos viajantes
Vieram santa e cruz
E cá fizeram Teston
Aceitar á Jesus
E disseram pra ele
Não poder permitir
Que a santa e as mulheres
Vissem aquilo ali
Por que irmãs e irmãos
Não devem juntos dormir


Quando Teston falou
Que não mais podiam atravessar
E que ele mesmo iria 
os filhos homens buscar
houve grande confusão
e as mulheres se negaram
aceitar a solução
pois queriam poder encontrar
seus separados irmãos

Teston saiu de lá

Sem fechar o acordo
e era justo a noite
que a cobra dormiu de novo

As meninas se prepararam
E na primeira noite sem lua
e contra toda vontade
O lago atravessaram
E não deixaram vivas
As mulheres que encontraram
E nesta mesma noite
Com todos os homens deitaram
E cada uma deixou 
No escolhido pendurado
Os verdes Muiraquitãs
Por elas mesmas moldados. 


As mulheres que sobreviveram
Tomaram todas as dores
E disseram que por ali
Tinha demais pecadores




Mediadas pelos homens 
Que gostaram da cavalgada
As mulheres aceitaram
Com as santas serem guardadas
E fazer a procissão
Sempre no ultimo dia
Que a cobra estivesse acordada. 




Se a cobra não dormir
Ninguém vai poder saber
Que dia tudo por aqui
Deve se suceder


Nem procissão
Nem cavalgada
E foi o senhor que criou
Essa confusão danada


Pois a cobra só vai dormir
Com as contas acertadas. 
Veja como o senhor já fez
Elas virem em hora errada
E se vierem de novo
Não tem nem como saber
O tamanho da enrascada. 


Eu vou falar com a cobra
Pra ver como resolver
O erro que o senhor
Acaba de cometer

E vamos almoçar
Que é hora de se comer.
Mas Raimundo já estava
Deveras assombrado
Despediu-se de João
E seguiu pro outro lado
Foi contar para Juca
O tamanho do estrago
Só ai percebeu
Que o cantil tinha secado. 


Quando chegou no rancho
Juca lá não estava
E a porta do bar
Bem fechada se encontrava


Comeu alguns beijus
E deitou na rede estendida
e só conseguiu pensar
na amazona atrevida
e no peito vermelho
da tão bela rapariga. 
Quando Raimundo acordou
Com a mente em confusão
Já encontrou o Juca com 
Seu chapéu na mão


Vamos tomar chá
Na casa de D. Chica 
Ela e João esperam nossa visita
Vamos lá descobrir
Como o senhor vai resolver
O problema que criou
E não vai parar de crescer
A casa de dona Chica
Estava toda enfumaçada
Tinha um cheiro gostoso
De mata verde queimada


João da cacimba bebia chá
E dona Chica fumava
A boa erva canarinha 
Que ela mesma plantava


Senta ai seu Raimundo
Que é bom vê-lo acordado
Como foi que se meteu
Nesse problema danado
Dizia D. Chica 
Comendo o lelê do seu lado.


D. Chica foi o sonho
Que o seu chá me fez ter
foi ele que me levou
a tal bobagem fazer 


E por acaso seu sonho
Já está a acontecer?


Olhe D. Chica, 
eu não sei mesmo lhe dizer
Por que o meu sonho
foi difícil de entender
e não sei se saberei, 
quando o outro chá beber.


Se o senhor ainda não sabe
É por que não está na hora
Tem com quem é rápido
E tem com quem demora
Mas a pessoa sempre sabe 
Se é depois ou agora. 




Se eu vou saber
Quando tiver acontecido
Então eu lhe digo
O sonho até agora
Não faz nenhum sentido


Quando eu achava
Que já tinha cumprido uma parte
Descobri que na verdade
Eu era autor de um desastre
Numa história que com certeza
Dela não faço parte. 


Seu Raimundo eu lhe digo
Uma coisa o senhor tem razão
O que o senhor arrumou 
Foi uma grande confusão
Pegue um cigarro e me ouça
disse á ele João


Depois que falei com o senhor
 
Com a cobra grande fui tratar
E não é boa coisa 
O que ela mandou lhe falar


A cobra grande está caolha
E muito furiosa
E quase que não aceita
Ter comigo uma prosa


Disse que comerá
Qualquer um que for no lago
E que não lhe preocupa
O tamanho do estrago


E que ainda não sabe bem
Que pode cometer
Se o senhor pra ela 
Não lhe dermos pra comer


Ou damos o senhor
Ou lhe consertamos o olho
E pela minha experiência
Lhe serviremos com molho


Talvez não nós
Que somos gente civilizada
Mas com certeza as filhas
Da Amazona encantada
Posto que vai se atrasar
O tempo da cavalgada


Raimundo coçou a cabeça
E tirou dela um piolho
Matou-o com o polegar
E só pensava no molho
No qual iam lhe meter
Pra o tempo voltar a estar certo
E a cobra adormecer




Ainda não entendi o que devo fazer


João logo disse
A dúvida aqui é assar ou cozer
Ou lhe botamos no molho
Ou fritamos no dendê.


E eu acho melhor
É tu parares de beber
Disse dona Chica
Comendo mais lelê. 
Não vês que estás 
Á assustar o Raimundo
Um rapaz que cá chegou
Pelo destino do mundo



Seu Raimundo se tem jeito
Desse problema sanar
só a orquídea malhada 
poderá lhe revelar
Mas de cada flor só se faz
Uma Xícara de chá
E mais de um mistério
Ela não revelará
Ou resolve o problema da cobra
ou do que lhe trouxe cá

E se acaso Dona Chica
Meu sonho não ocorrer
O chá da tal orquídea
Eu poderei beber


Eu já lhe disse que não
E isso não tem jeito
Se não morre, endoida
A cabeça do sujeito


Será que a cobra não aceita
Outra negociação
Que não seja me devorar
Pra resolver a questão


Seu Raimundo aquela cobra
Já viu de tudo a bendita
Se o senhor lhe olhar o couro
Não verá nele ferida
E o senhor lhe furou o olho
E tentou tirar-lhe a vida
Quando falei com ela
Ela estava furiosa 
Vamos ver se mais pra frente
ela aceita outra prosa. 


Se não vamos lhe dar pra ela comer
Vou que já está na hora 
Juca já vais abrir
o teu bar por agora?




Vamos João da cacimba
Deixemos Raimundo cá
Com a D. Chica da Vitória
Ele tem muito que falar
Tenho certeza que juntos
O remédio irão achar
Raimundo tirou do bolso
A pedra verde amarrada
e mostrou pra dona Chica
que ficou muito assustada
Me diga seu Raimundo
onde isso estava.


Isso eu achei no chão
caiu de alguma amazona
no meio da confusão
guardei-o aqui comigo
mas careço explicação
de o que se trata isso
que me disseram maldição


E antes que a senhora comece
esta historia me contar
tenho ainda outra coisa
que achei melhor aguardar
quem é aquela mulher
que cá veio me ameaçar?

D. Chica pegou a pedra
e olhou rapidamente
é impressionante
como a Dona ele não mente.

Seu Raimundo ouça atento
o que eu vou lhe contar
é um pouco da história
da gente deste lugar

sei que o João
já lhe contou uma parte
mas tem coisas que ele
certamente não sabe.

quando o Muiraquitã morreu
e Una lhe enterrou no barro
que a Lua esverdeou
e pôs no fundo do lago
Una la mergulhava
pra visitar o padrinho
e de lá sempre trazia
daquele barro, um pouquinho

com a lama que pegava
ela repetia
a imagem daquele
sem o qual não existiria
mas a lama era mole
e rapidamente se desfazia
e  em profunda tristeza
Una sempre caia.

Teston contou ao sol
o que acontecia
Una moldava
o sapo derretia
o sol disse que sim
Diga a Una que traga
os seus sapos pra mim


a tristeza de Una era imensa
e o sol bem caprichou
a sua força foi tanta
que a tristeza dela acabou
as peças ficaram tão duras
que nunca mais nenhuma quebrou

Quando um Dia Teston saiu pra caçar
Una ficou preocupada
por que rondava por aqui
uma onça pintada
que já tinha atacado
muitos bichos de emboscada

Ela entregou pra Teston
muitos Muiraquitãs
amarrados ,
para protegê-lo dos perigos
pelo mato espalhados

Teston saiu com um monte deles
pendurados no pescoço
e como Una temia,
a onça encontrou o moço
quando lhe pulou
deu com a boca nos colares
e por conta dos cordões
presos nos molares
com alguns Muiraquitãs
ela ficou entalada
e pra surpresa de Teston
a onça morreu engasgada



Com os caninos da pintada
Teston fez um colar
e pendurou em Una
pra ela se lembrar
que não havia perigo
impossível de enfrentar

o tempo se passou
e o costume continuava
Una pendurava o Muiraquitã em Teston
e os dentes de bichos ele lhe dava
quando os filhos cresceram
as meninas Una ensinava
a fazer o Muiraquitã
por que ele protegia
lhe protegeu da fome da cobra
e protegeu Teston da felina.

os dentes que carregam
as amazonas que o senhor viu
representam os perigos
que cada uma sobreviveu

antes eram os irmãos
que os dentes coletaram
depois que eles se foram
elas perigos próprios enfrentaram
tanta dificuldade tiveram
que dos seus peitos vermelhos
os alimentos brotaram
por que quando de parida
não podiam ir pegar
a comida que precisavam
para os seus filhos criar.

Além disso cada uma
tinha seu próprio jeito
de o colar fazer
de modo que é sempre possível
a autora reconhecer

como cada uma tinha
seu irmão preferido
era sempre o colar
dado paro o escolhido

isso evitava
que se repetisse a confusão
que tinha originado
aquela separação

a briga de Jurema e Jatuira
era sempre lembrada
como o que gerou o castigo
das duas avós encantadas.


quando as irmãs iniciaram
o costume da cavalgada
levavam sempre consigo
a pedra verde amarrada
para lembrarem seus homens
e ficar neles marcadas

se uma amazona entregar
pra um homem o Muiraquitã
e por acaso o vir, uma outra sua irmã
essa dele se afasta,
lembrando bem do dia
que o Sol e a Lua castigaram
Jurema e Jatuíra

Um Muiraquitã nunca esta perdido
ele sempre está no lugar
onde aquele pra quem se destina
vai certamente o encontrar

se o senhor possui um agora
só lhe cabe decidir
se o pendura no pescoço
ou o deixa seguir
isso é definitivo
pro dia da cavalgada
onde cada uma procura
seu Muiraquitã pendurado
e o jeito de saber
em que porta
o menino será deixado.

no dia da cavalgada
enquanto a desordem se instala
a anciã sorrateira
as garotos espalha

por aqui já é costume
essas crianças criar
sempre com o medo
de uma delas se vingar
e arrancar alguns dentes
pra pendurar no colar.

seu Raimundo, seu Raimundo,
volte agora pra este mundo
e quando ele abriu os olhos
D. Chica falou
foi o chá errado,
aquele que o senhor tomou!

E agora dona Chica
Que eu terei de fazer
Se com o chá que bebi
O passado me fez ver
Que tal você me contá-lo 
Assim poderei saber
Se outro chá
Ainda deve o senhor beber

Quando Raimundo contou o sonho
Dona Chica se entalou
E sufocada com o lelê
Assim ela lhe falou:

O sonho que o senhor teve
É o que se conta aqui
Mas foi com outro viajante
Que o mundo pra cá fez vir

A moça do seu sonho
Era a mesma Matinta pereira
Herdeira da antiga
Que aceitou desta a sina
Uma mulher vira Matinta
Quando aceita o oferecimento
Que a Matinta faz em seu falecimento
Ela pergunta quem quer
E até alguém aceitar
Permanece o sofrimento
Que ela só para de agonizar
Quando passa o encantamento.

O moço do seu sonho
Era um negro que foi escravo
Se chamava Benedito
Como o santo Mulato.
Uns diziam fugido, outros diziam naufrago.

Trouxe pra cá muita reza
Muito santos e celebração
e já são velhos seus netos
Beija, Cosme e Damião
que eram filhos de dona Carmita
Que também era assombração.



A cobra grande agora vive
Lá dentro do Rio
Mas Benedito não lhe deu problemas
Ele fez foi lhe ajudar
Com a intenção de resolver
O conflito familiar.

Quando descobriu a maldição da amada
Benedito partiu pro lago em busca da encantada
E lá disse pra ela que não poderia deixar se repetir
Sua mulher por o ovo e dar pra ela engolir


A cobra já cansada de toda vez explicar
Explicou mais uma vez, para Bené se calar
Disse o senhor me perdoe
Mas isso não posso fazer
Preciso desse ovo
Ou não paro de crescer
Se eu não ficar aqui no lago
Certamente irei morrer


E como é que pode
A D. cobra saber
Se nunca daqui saiu
Para outras coisas poder ver.
Não se sabe muito bem como ele conseguiu
Mas se sabe que o danado a cobra persuadiu
E juntos cavaram até o lago juntar com o rio
Quando a cobra se viu viva
Foi grande felicidade
Ela sentiu uma coisa
Que lhe disseram liberdade
Parece que foi o Benedito
Que lhe ensinou naquela tarde.

Foi assim que surgiu o nosso Igarapé
De um acordo da Cobra, 
com o bom e sábio Bené
Que mudou muita coisa por aqui
Disse que se quisessem
As amazonas podiam vir
Falou com as mulheres da Santa
Que freqüentavam seu barracão
Ensinou tanto pra elas
Que acataram sua sugestão
Assim acabava o medo
De serem pegas de supetão.

Mas as moças não aceitaram
A sua festa esquecer

Por isso aqui depois da missa
No tempo da procissão
Também ocorrem as festas
No velho barracão

Tem quem bate o tambor de Bené
Tem quem lembra das caboclas
Tem quem reza pra santa
E quem não faz nem coisa nem outra

Seu Juca além de mim
É dos poucos vivos que conheceu
O velho Benedito
que com mais de 100 morreu
e foi justo nesta noite
que o barco de Juca desapareceu.

Agora vá seu Raimundo
Volte lá para o mundo
E vá procurar o que o senhor perdeu
Que agora quem vai dormir
Um bocadinho sou eu.

Dona Chica diga agora
O que eu devo fazer
Será que não posso logo
Outro chá beber?

Seu Raimundo
Num se afobe
Que o senhor acordou agora
Só vai tomar outro chá
Se achar algo lá fora
que resolva uma parte

do seu estranho destino,
por que esse tem é arte.



 Raimundo muito assombrado tomou a decisão.
encoxou a Gracinha no canto do barracão
já sabia que naquela cidade não ficava mais não
pegou pra si um outro barco
que o seu era o de Juca
que havia lhe salvado em outra ocasião

teve de  levar consigo
por que não havia escolha não
o vaso da Orquídea Malhada
que devolveria em outra ocasião.

E assim ele foi antes da procissão...


e assim Raimundo e Gracinha
 se foram na embarcação que Maneca 
ofereceu se a moça lhe desse a mão
 fazia bom vento naquela noite levou longe a embarcação.

O mundo todo é um caminho
Por onde a gente passear


Pode ser terra, água e vento
O que nos leva pra outro lugar
Entre nos pontos pode haver
Apenas uma linha de plugar
E onde quer que se esteja
E onde quer que se vá
Os caminhos que se sabe
São sempre os de voltar
Cada ida leva junto
A história de um instante
Pois não se encontra nunca mais
A vida como era antes
Cada chegada é surpresa
De não saber o que buscar
Além da água e da carne
E de um teto pra se abrigar
Tudo por onde se passa são ruas
Nem todas de pavimentar
Tem caminhos que são cruzados
Sem os pés nele encostar
O importante é a bagagem
Que sempre iremos levar
Tem as de não passar frio
E as de não se afobar
Tem bagagem de mão
Outras dentro do olhar
Nenhum caminho é sem fim
Por que sempre haverá
Um lugar por ele
Que é lugar de parar.
A alma da gente as vezes,
Pede para poder se apaziguar
Quer ver coisas e lugares
Supor e imaginar
Parados numa janela
Os viajantes se deixam levar
Ou deixam que sigam as pernas 
Sem mais delas se lembrar
E esta pausa entre a partida e a chegada
Que chamamos viajar.

Quando encoxou Gracinha, Raimundo lhe pegou
justo  pela cintura e no meio do ouvido falou

vem-te embora comigo, que eu sou o teu lugar
te juro que do meu lado, nunca vais te cansar
te conto o mundo do céu, te digo os peixes do mar
te explico como o arco-íris consegue o céu cruzar
e te mostro todos os caminhos
por onde se pode passar.
e te explico o sentido, completo de viajar. 
a vida tem muitos caminhos, uns é melhor evitar
de certo que passar por eles
pode problemas causar
mas te digo pela vida
prefiro me desgraçar
por que mais valem teus olhos
que a vida inteira levar.

não sei de onde viestes
nem pronde vais me levar
mas sei que entre os teus braços
a vida eu podia passar
me deixa ficar nos caminhos
me ensina por eles passar
que agora sou teu bichinho
me ensina a te agradar.



Raimundo ensinou
 muitas coisas pra Gracinha

Ensinou o que era aeronave,
 viajem e doidinha

E Gracinha aprendia rápido,
era bonito de ver

Subia, descia, falava e tudo 
e em tudo era linda de ser

Ele pegava no colo, ela toda miava

Ele deitava no chão, ela uma cobra imitava

Fizeram promessas de vida, juraram nunca morrer

E pra sempre se prometeram um ao outro querer

Um dia enfiaram no dedo, ferro de nunca esquecer

E lealdade juraram pra vida inteira se ter

Mesmo que te vás pro mundo

Tu de mim lembrarás

E não importa onde eu vá

Sempre irei te buscar...
A gente forja no tempo a vida que queria ter 


A gente se perde na vida

Que caminho é ter que escolher

E caminho por si é vida

E é quase sempre correr

Nada pronto na hora

Nada se pode fazer

E as vezes no lugar sem saída

Só volta é o que pode se ter

Perdidos aqui sempre estamos

A vida é só ter de haver

Eu devo, e um dia eu pago

E quem deve 

Comigo há de ter



Quem sabe o que é melhor

Ficar ou partir sem temer

Quem sabe que coisas do tempo

Em nós podem acontecer

Ora o tempo senhor das misérias

Que pode este infeliz saber

Se consigo só trás ruga e traça

E em nada ajuda a viver?



Que bobagens é essa que dizes?
Pois então não estás a ver

Que sem saber o tempo das coisas 

Ninguém espera o florescer?



Que se não marcássemos o tempo

Ninguém saberia o que fazer

Se soltamos a tracajá

Ou ela vamos comer?



Te deita aqui do meu lado

Que eu te faço entender

Que as vezes o tempo passa

Sem nem a gente ver.

O caminho sem rumo


Foi por eles escolhido

Tanto se distraíram 

Que rota não resolviam 

Contaram a vida toda

Da infância aquele dia

E tinham a sensação 

que nem mais um segredo existia

não sabiam quanto tempo

estavam á navegar 

apenas constataram que precisavam aportar. 



Depois de muito navegarem

Por grandes e pequenos rios

E já terem se conhecido e aceitado o desafio

Raimundo e Gracinha desembarcaram

Numa ribeirinha vila

Onde pelo seu porto

Muitos barcos se via. 



Nem bem desembarcaram

Foram logo interpelados

Por um homem que vinha

Com um cesto de pescado

Bom dia , meus senhores, 

que negócios lhe trazem cá 

É sua a bela mulher que está a lhe acompanhar?

Estou aqui de passagem vim meu barco abastecer

Devemos sair ainda hoje

Ao fim do entardecer

Temos um fardo de charque

Pra melhor negociar

E conseguir todas as coisas 

Que cá viemos buscar

Charque aqui é raro

É coisa de muito valor

Me mostre a mercadoria 

Que posso ajudar o senhor

Vamos lá na embarcação 

Que eu vou lhe mostrar

E lhe peço sua ajuda 

Para por aqui trafegar

Eu me chamo Raimundo

Como Santo Nonato

E ando por esse mundo

Com Das Graças no meu barco. 

Eu sou Maria das Graças

Como a nossa senhora

E com estou com Raimundo 

Dividindo a vida agora

Já eu me chamo Carmito

E aqui sempre vivi

Conheci toda a gente

Que já esteve aqui. 



Pois sejam muito bem recebidos

Na nossa humilde vila

Aqui se vive da pesca

e das coisas de plantar 

e são muito esperados

os artigos de marretar

por isso o seu charque

bem rápido vai trocar.

Aqui se vendem vestidos

Perguntou Gracinha animada

Pra sua sorte esta aqui

Para uma empreitada

Um vendedor de roupas

Alegria da mulherada. 

Se chama Zé do Castelo

E vem de quando em tempo

Mas é bom ter cuidado

Pois é dos maridos tormento

Gosta de apertar costuras

Na cintura das moças

E sempre trás largos vestidos

E suas agulhas na boca. 

Raimundo olhou pra Gracinha

Com cara desconfiada

Mas rápido passou

Ao ver sua risada

Que lhe dizia faceira

Comigo não terá nada

Quando chegaram no barco

E Carmito viu o charque

Disse assim pra 

Raimundo

Por que não diz onde andastes

De onde vem as coisas

Que a pouco me mostraste.
O charque é do Bom Juca do bar

com o qual a pouco
estive a negociar
lhe trouxe para seguir o caminho
o qual pretendo trilhar


É da cidade de Juca que venho

e é de la meu barco

que já foi do Seu Maneca

que nos deu como regalo



Pois o senhor me acompanhe

que precisa ver alguém

é dona Tiana Jacinta

quem manda nesse lugar

é a mãe de todos nós

e consigo haverá de falar



Aqui conhecemos o Juca

e seu charque é tradição

e deve haver do senhor um recado

trazido na embarcação

que essa aqui é a regra

para iniciar negociação



Das Graças voltou para o barco

pro seu vestido trocar

e foi só ai que viu

o que não havia notado

a orquídea malhada florescida

dentro do vaso roubado



Gracinha levou consigo

muitas roupas para usar

mas sempre queria vestidos

pra melhor se apresentar



Escondeu a orquídea malhada

por trás dos pés de coentro

e pegou a valise

onde guardava  ungüentos


eu prefiro não ir agora

disse Raimundo Nonato

ao que lhe foi respondido

tens de ir pois não há trato

por aqui só fica, quem dona Tiana

oferece prato. 



Gracinha pulou na frente

com penteio e bem arrumada

e trazia expostos no peito

uma pedra verde amarrada. 



Raimundo não tinha visto

a pedra de Gracinha

e não pode lhe perguntar

posto que de longe vinha

um amontoado de gente

pra lhe oferecer

companhia. 





Foram todos caminhando

numa grande procissão

até entregarem o casal

na porta dum barracão






Gracinha seguia na frente

parecia estar entendendo

enquanto Raimundo voava
no que estava acontecendo



Quando entraram eles viram

uma grande negra sentada

tinha na mão um cajado

e em torno de si

dez de escoltada.



Louvado seja o senhor Jesus Cristo

disse Raimundo bem rápido

Gracinha na sua frente

pôs o joelho no chão

e abaixando a cabeça 

botou na testa sua


De onde te vens minha filha

onde deixaste o umbigo

e qual a história

do sapo que vem contigo



Raimundo não entendeu

por que a mulher lhe ignorava

mas achou muito bem

porque agora ele pensava

que explicação daria

pro charque que carregava. 





Eu sou Maria das Graças

Filha da Chica da vitória

e posso lhe contar pouco

pois pouco sei de minha história

a pedra que trago comigo

me foi dada pequena

me disseram que protegia

da vida de duras penas
em sua porta fui deixada
num dia de tempestade
por isso não sei de parentes,
caminhos ou cidades




Este aqui é Raimundo
que agora esta comigo
foi quem me tirou
do meu mundo mais antigo. 


Trouxemos provisões
e muitos bonitos vestidos
queremos abastecer nosso barco 
e seguir nosso destino. 





Todas as mulheres ouviam
de Gracinha a explicação
mas nos seus olhares não havia
nem sombra de aprovação. 

Dona Tiana se levantou
e caminhou até Raimundo
que havia ficado
na sala mais pro fundo
Aqui nesse lugar tem regra
e o senhor tem que saber
e pra ficar por aqui
tem que se fazer merecer
Me diga o recado do Juca
que dele quero saber. 





O Juca não sabia
que eu pra ca eu me dirigia
por isso não tenho recado
se não eu lhe diria. 
Vocês almoçam comigo
vou mandar lhes servir
um feijão com quiabo
que servimos por aqui



Posso lhe oferecer charque
pra botar no feijão
basta que eu vá lhe buscar 
lá na minha embarcação
O senhor guarde seu charque
que a comida já está no fogo
e antes que vocês comam
devemos lhes botar jogo



A mulher que tinha entrado
olhou bem pra Gracinha
e passou a mão em seu vestido
lhe esticando a bainha



Agora vão pra feira
não podem nada vender
nem devem nada aceitar
pois o jogo só lhe faremos
bem depois de almoçar



Aqui não queremos dormir
disse Raimundo afobado
temos que seguir
nos esperam em outro lado. 



A velha Tiana saindo
ainda lhe disse uma coisa
que Raimundo não pôde entender
-Lhe digo que essa escolha,
não pertence a vosmecê.

Quando Raimundo e Gracinha,
saíram do Barracão
foram pra um lugar deserto
ter a seguinte discussão

Por que colocaste o joelho no chão?
onde tiver palha na porta
há de ter autoridade
e é sempre bom reverenciar
á quem governa a cidade
isso aprendi com a velha
é bom costume a se ter
saber sempre quem manda

e até mesmo obedecer

Tem algo que não te disse
por conta dessa enrascada
esta noite floresceu
a nossa orquídea malhada
Precisamos sair daqui
antes que descubram a confusão
vamos voltar pro porto 
E seguir nesse mundão
Seguiram pelo caminho
por muitos olhos espiados
eram por todos vistos
e por nenhum interrogados

0 comentários:

Postar um comentário