A Cunhã



Homem não fique assim


não queria lhe aperrerar

não pensei que essa história

fosse tão longe chegar

Como estás vendo sou preta

da cor da noite sem lua

e nunca fui de ninguem

antes de ter sido tua

nem tinham como saber

que eu era lá das vermelhas

num fosse essa confusão

ter chegado nessa aldeia



O que sei da minha História

é o que posso contar

tem parte que ainda não sei

e talvez Mãe Tiana saberá

como tu sabes cheguei

na porta de Chica da Vitória

numa noite de muita chuva

dentro de uma cesta sem glória



Eu tinha lá pra seis anos

quando outra velha chegou

tomou chá com a madrinha

que certa hora me chamou

falou que aquela senhora

era a dona minha avó

e que agora pelo mundo

eu estava menos só

pois ela ia me dizer

de onde é que eu vinha

e que eu tinha um destino

que em tempo eu saberia.



Essa venha me entregou

um sapo verde amarrado

que era de minha mãe

e que eu tivesse cuidado

falou que eu era importante

e que eu tinha que me cuidar

que num lugar bem distante

tinha um povo a me esperar



Essa Caboca que eu conto

é a mesma que está morrendo

desde esse dia vinha sempre

pra me acompanhar crescendo

me ensinava muita coisa

eu ia com ela pra mata

aprender a cavalgar

caçar bicho e fazer garrafada
mas nunca ela me falava

me levava no lugar de que eu vinha

só me contava as histórias

da gente que lá vivia

um dia ela me disse

que meu pai foi homem bom
vindo de um longe lugar

mas que não teve boa sorte

 com as feitiçarias de lá

ela me dizia,

que prá lá não me levava

por que tinha uma parte do povo

que de mim não se agradava

dizia que eu era princesa

e eu num acreditava

por que na cidade diziam

que eu era filha de escrava.



Sei que meu pai foi um nego

que por lá apareceu

vinha de muito longe

e nem me conheceu

era de tão longe

que mal sabia falar

e só os velho entendia

seu modo de conversar

aconteceu dele estar

no tempo da cavalgada

e com minha mãe se entender

na base das estranhadas

e misturaram suas linguas

sem nem dizerem palavra

foi o que me disse

a minha vó, ó coitada!



Gracinha se pôs a chorar

e Raimundo não se aguentou

botou a nêga no colo

e muito lhe consolou

ficou lhe agradando

até o choro passar

e perguntou se ela

tinha mais pra lhe contar.



Eu sou das amazonas

minha mãe virou matinta

sei fazer encantamento

e pintar o corpo de tinta

falo lingua do mato

converso com passarinho

e de cada planta de cura

eu sei dela um pouquinho

corro mais que uma ema

amanso cavalo brabo

sei usar arco e flecha

atiro a lança de lado

mas não visitei meu povo

nem nunca precisei usar

nenhuma dessas coisas

por nunca ter ido lá

eu só treinava com a vó

que era pra eu me lembrar

de onde vinha, quem era

e o que estava a me esperar

faz alguns meses que a madrinha

me deu o mesmo recado

que minha vó tava quase

se passando pr´outro lado

eu fiquei foi com medo

por que ela sempre dizia

que tinha gente lá

que por lá não me queria

agora é que eu sei

que é essa tal de Monira

eu mesma não quero voltar

Deus me livre dessa sina

de viver montada em cavalo,

morar no mato e ser rainha

de um monte de mulher braba

que nem usa roupa de cima

já me pensaste pelada

andando de lá pra cá?

pois muito mal fizeram

de me mandar educar

pois não tem jeito na vida

de eu entre elas morar

deixa virem atrás de nós

não vamos fugir mais não

vou dizer pra elas

que abro mão da função

e que vou seguir contigo

na nossa embarcação.



Quando chegava

o tempo da cavalgada

eu ia pro meio da praça

mas ia bem disfarçada

falava com as mulheres,

mas de mim não viam nada

pra não saber minha cara

e não me fazerem nada

participava da dança

que elas tem que fazer

antes que saiam atras

dos homens que querem ter



tem gente que pensa

que elas só vem na cavalgada

mas é gente boba

que está muito enganada

por que elas espreitam homem

pelos matos entocadas

e lá mesmo se deitam

quando se veem danadas.



A vó sempre me disse

pra com ninguem eu me deitar

antes de ter assumido

na aldeia o meu lugar

pois se eu tivesse menino

na cidade ia ficar

e se fosse menina

elas iam me tomar

nós falamos rainha

que é pra você entender

elas chamam de Cunhã

aquilo que devo ser

mas olhe bem pra mim

que costumes tenho eu

que possa pra elas dizer?



Raimundo pensou um pouco

e fez que tava então tudo certo

era só dizer pra elas

que a Monira cuidava do resto

que você não quer isso

e podem desmontar o presépio.



Se tu já constaste a história

vamos então passear

que por aqui haveremos

de algum tempo ficar

eu ainda nem te contei

que sonhei com a orquidea malhada

que dava uma flor das grandes

nossa plantinha danada



Das Graças olhou pra ele

e disse desconfiada

sonhaste por acaso

com a cobra grande encantada?



Só não vou te perguntar

por que tu já me falaste

que tu é feiticeira

pois eu vou é te contar

a historia do sonho inteira



Gracinha disse que tambem sonhou

com a cobra grande encantada

e que esta lhe pedia

pra eu lhe dar a malhada

pra resolver uma briga

e desarmar a cilada.



Depois do almoço vamos no barco

pra nela dar uma olhada

que já tá mesmo no tempo

de nascer a flor falada

é bem por agora mesmo

se não estou enganada.

A Das Graças



Bem esconderam o barco

e seguiram no matagal

pararam só uma vez

por um instinto animal

depois de terem nadado

num pequeno braço de rio

se esquentaram entre folhas

por ser Gracinha de cio.



Quando avistaram a vila,

era  já manhã alta

tinham só o cesto

com coisas de Das Graças

que disse que precisava

de uma muda de roupa

pra quandoo tempo esfriava

quando chegaram na feira

sem com o que negociar

foram logo estranhados

pela gente do lugar

Raimundo encontrou

com o retinto Zeca Tino,

que em seu sonho não viu

mas este era quem erolava,

algodão cru de pavio



Bons dias meu bom homem

desculpe lhe atrapalhar

mas preciso ver a pessoa

que dita as regras por cá



Tu procure Mãe Tiana

que aqui é quem nos diz

quem vai ser caçador,

capoeira ou aprendiz

vá seguindo aqui reto

Até palha nas porta encontrá

na casa maior

é que a mãezinha vai tá

e lá vosmecê conte a ela

o que lhe traz nessa vila

ela já deve até sabê

por que ontem teve jogo

e hoje cedo mandou

por mais comida no fogo

eu mesmo que levei

pra ela os aviamento

disse que esperava um charque

que ia chegar em tempo



Gracinha ficou assustada

e olhou pra Raimundo

por que escondeu entre as coisas

bem mesmo lá no fundo

um bom pedaço de charque

pra não passar fome no mundo

Quando contou pra Raimundo

pelo meio do caminho

Esse não lhe brigou

e nem fez desalinho

falou que só iam entregar

se algo lhes pedissem

e tão certo só fariam

o que por lá lhes permitissem.



Quando chegaram na porteira

toda enfeitada de palha

viram que dentro dela

vinha um preto pequeno

que trazia em sua mão

uma pequena navalha

correu e abriu a trinca

e se pôs na ladainha:



Olha quem vem de lá

baixar nesse terrero

nós aqui num gostamo

de caboco presepêro

venham bem devagar

pra  num se ferir

nem ferir os costume

que nós temos poraqui.



Bom dia eu lhe digo

me chamo Raimundo Nonato

e vago por esse mundo

pra cumprir o meu contrato

de procurar o que não perdi

que pode estar nesse mato.



Eu me chamo Maria

como a santa dos brancos,

e me disseram das Graças

mas não trago comigo manto

estou aqui com Raimundo

vou com ele em qualquer canto.



Aqui me chamam Tiriri

mas tenho muito nome

em tudo quanto é lugá

se quiserem mandá recado

podem certo me chamar

pode contá que vou

que gosto bem de ajudá

mas a primeira bocada

na comida sou eu que dá.



Tiriri saiu correndo

e la de dentro gritou

podem se chegar pra dentro
que a Iyá desocupou

mas tiram o sapato

antes de entrar faz favor.



Quando Raimundo e Gracinha

entraram no barracão

sem muita demora

botaram os quatro joelhos no chão

e de cabeça baixa

beijaram de Mãe Tiana a mão.



Ocês qui vieram

pelo destino do mundo

faça favor de entregar

esse charque ai do fundo

dona Maria das Graças

muié do branco Raimundo.



Eu sei que cês cá num tão

trazido de boa maré

quando a peixa tá ovada

solta cheiro no pichéu

mas lhe digo seu Raimundo

não tenha medo não

que meu povo bem conhece

gente branco ladrão

Mas essa cabocla Das Graças

o senhor num faça mar

que ela é das encantada

que tão a lhe caçar
e se elas pegare o senhô

certo que vão lhe capá


elas já cá vieram

mó de me interrogá

se eu tinha vido a tar moça

que ia pru cá chegar

Pois foi o que disse

a velha Xica do Chá

nós vez por outra se estranha

que elas num tem respeito

vão pondo aquelas lança

nas cara de quarqué sujeito.

só num me agride

por que sabe que aqui

se elas me afrontare

num hão de cá saí.



Num vou lhes dá pra elas

que num gosto de rinha

me dê o jabá de Juca

que ele mandou a farinha

e disse procês num se importá

que ele tá muito contente

de Raimundo devorvê o barco

á tanto tempo perdido

que agora lhe traz no peito

e inda lhe tem como amigo.



Gracinha entregou o charque

e perguntou pra mãe Tiana

se tinham saido fazia tempo

as caboclas montadas

e se ela sabia

algo da cavalgada.



já faz duas noite

que elas vieram cá

vieram pelo rio

e por ele se foram

disseram que a procissão

já tava pra acontecê

por isso não iam esperar

aqui por vosmecê,

mas que depois da cavalgada

num iam mais sossegá

até te pegar de volta

e o tal Raimundo capar.



Raimundo engoliu seco

com essa informação

levantou-se bem aflito

e caminhou no barracão

Não sabia que Gracinha

ia dar tanta aflição.



Raimundo perguntou pra Gracinha

gago e sem respirar

por que as amazônas

estavam a lhe procurar

Gracinha baixou os olhos

pois inda não tinha contado

que Raimundo se apossara

foi de um corpo sagrado

da futura amazona mãe

das outras mulheres do lago.

e mesmo assim ficou calada

sem muito querer lhe contar

e novamente Mãe Tiana

teve que lhe explicar.



O senhor deve saber

a história das guerreiras

que o povo branco enfretaram

engasgando padre e freira

muito ajudaram nosso povo

quando pra cá nos trouxeram

sem nos dá nem direito

nem vestimenta ou chinelo



Pois lá entre elas

também tem seus costume

tem as que vira matinta

e as que comanda o cardume

pois essa ai do seu lado

é princesa encantada

dona das sabedoria

das muié vermeia montada

criada cos branco

pra melhó se educada

e melhó podê sê rainha

quando se for a de agora

que num sei se o senhor

conheceu, mas vai morrer

quarqué hora

pois que tá muito doente

foi a notiça que tive

eu mandei até uns remedio

e já pedi que o pai lhe livre

por que a que vai ficar

no lugar dessa bendita

é a caboca Munira

uma muito desaforada

que da Maria das Graça

é prima travessada.



A mãe de Gracinha

se bem me explicaram

teve ela antes

de ficar cá maldição

de virar Matinta

mulher-assombração

assim foi que as mazona perderam

uma geração

tiraram essa ai de perto

pra ela num se assombrá

e com medo da Munira

tentar lhe afogar

pois olhe nem foi preciso

por que a danada fugiu

bem na hora que a caboca velha

da morte já sente o frio.



A pois é voces que sabe

o que é que vão fazê

mas é verdade o que digo

a velha tá pra morrê

que onte sonhei com ela

dançando com nhá ibalé.



Já contei a História

vô deixá oces aqui

lhes convido pro almoço
e vou com prazer lhes servir

vô lá na cozinha

pro serviço encaminhar

Vão passear por ai

que eu mando chamar

quando for ora da boia

Tiriri vai avisar.

que o danado come premero

mas só quando todo mundo chegá.



e numa risada boa

a preta velha saiu

deixando só o casal

Gracinha chorando a vó Cabocla

Raimundo passando mal

o que mais escondia gracinha

a Das Graças desse tal.



Gracinha eu que pensava

que não haviam segredos

pois eu devo lhe contar

que agora sinto medo

quero que você me conte

o que mais tem nesse enredo

e não me olha assim

que eu num lhe ponho um dedo

até você me contar

o que está acontecendo.

O sonho de Raimundo.


E com a cantoria dos meninos
Raimundo despertou
e viu que era só sonho
tudo que se passou
olhou pra fora do Barco
e viu que tinha aportado
olhou de novo pra dentro
e viu gracinha do lado
constatou também
que a flor não tinha brotado
continuava assombrado
mas não acovardado
acordo com beijos Gracinha
e mandou ela se arrumar
disse que iam esconder o barco
antes de desembarcar
que alguem tinha lhe avisado em sonho
pra mais confusão não arranjar.

O Mensageiro



Quando gracinha voltava
 pelo caminho assustada
encontrou-se com um homem
no meio da encruzilhada,
como vai a senhorita que parece tão afobada
eu não vou muito bem
já deve o senhor saber
pois aqui todos sabem o que está a acontecer

eu mesmo não sei de nada
e quero muito lhe ouvir
tenho tempo de sobra
para ficar por aqui
mas eu não tenho nada
que eu queira lhe contar
só queria mesmo o meu barco encontrar
quer um pouco de cachaça?
Acho que vai lhe ajudar
A seguir o caminho e seu barco procurar
Não vou mais procurar o barco
Estou voltando pra vila
Preciso encontrar meu homem
Pra um recado lhe dar
Pode ser que eu não chegue a tempo
Pois me esperam pra almoçar
Eu posso dar seu recado
Que é esta minha função
E assim podes seguir
Direto pro barracão
Gracinha olhou pra ele
Meio desconfiada
Mas resolveu arriscar
Pois não faria mal
e como sei que não vais contar
Aquilo que te falarei
Para outras pessoas?
Como isso eu saberei?
Se o teu recado for dado
Para quem se destina
Fazemos um trato
Na hora do almoço
Primeiro serves meu prato.
Gracinha achou muito bom
Fazer aquele trato
E mandou dizer pra Raimundo
Que deixasse pra lá o barco
Que  seguisse as ordens
Todos que lhe mandassem
e que fizesse o favor
e pro almoço não se atrasasse
Darei o teu recado
Disso tenha certeza
Mas não se esqueça que eu
Comerei primeiro na mesa
Gracinha abanou a cabeça
E do homem apertou a mão
E perguntou qual dos caminhos
Dava no barracão
Tu vais seguir por aqui
Que eu vou pro outro lado
Na hora que fores comer
Eu estarei do teu lado
Gracinha riu do homem
Que só pensava na comida
Seguiu o seu conselho e pos a caminhar
Com um certo medo
De Raimundo ele não achar.

Quando Gracinha Chegou
Na porta do Barracão
Lá tinha sete meninos
Em enorme confusão

Fizeram em volta dela
Uma roda de mãos dadas
E começaram cantar
 uma cantiga engraçada

Quantos quiabos
Podemos comer
Quantos quiabos
Tem pra oferecer
Dança com a gente
E vem nos contar
Se tens um doce
Para nos dar

Dance com a gente
Para se não esquecer
Quem deverá
Primeiro comer

Gracinha não se assustou
E em resposta para eles falou

Sete meninos sei que vocês são
E sei que sabem toda confusão
Eu não trago doces comigo não
Mas tenho quiabos na embarcação
O que prometo haverei de cumprir
E sei quem devo primeiro servir
Dança de roda não posso brincar
Pois lá dentro estão há me esperar

Os meninos saíram gritando
Vamos ver onde tem caruru
Quem prometeu a comida foi tu
Só faça acordo que possa cumprir
Pra não arrumar confusão por aqui.

Gracinha suspirou
Todo mundo por ali lhe dando conselhos
E ela toda errada, barco dos outros
Comida furtada, só queria saber
Como sair da cilada
Que ela sabia que estava
Desde a alvorada.